domingo, 6 de novembro de 2011

A Pré-Historia de Portugal na Eurovisão

Junho de 1960- O II Festival da Canção Portuguesa tinha tido lugar há uma semana atrás quando apareceu nos meios de comunicação o anúncio de uma nova iniciativa. Sob o título "I Concurso das Canções Ligeiras da RTP" a Televisão Portuguesa comunicava o regulamento de um concurso de originais inéditos de autores portugueses a ser entregues até 30 de Junho (20 dias mais tarde!!!) para escolha das quatro melhores canções. Além de um prémio monetário, às canções escolhidas era assegurada "-a gravação em disco; -a apresentação pela RTP no Concurso Internacional da Canção Ligeira da EUROVISÃO, em 1961; (...)".
Quer dizer: como Portugal se ia associar à Eurovisão em 1961, a RTP planeou concorrer ao Concurso da Eurovisão desse ano (tal como a Espanha, que realmente concorreu pela primeira vez em 1961). Não se compreende a menção a quatro canções em pé de igualdade porque teria que acabar por ser escolhida uma só canção para representar Portugal.
Conforme previsto, os resultados foram anunciados num programa de variedades realizado pela RTP a 20 de Julho. As quatro canções premiadas foram: "Ilusão de amor" (Jorge Costa Pinto); "Amanhã se Deus quiser" (Jerónimo Bragança, Nóbrega e Sousa); "Recordando à lareira" (J.Araújo Pereira); e "Talvez..." (Carlos Canelhas). Além destas foram premiadas com menções honrosas "Cega Rega" (A. Galvão Lucas), "Brisa do Mar" (Manuela Teles Santos, Andrade Santos), e "Viela" (de autor incógnito, por não ter permitido a divulgação do nome).
Nunca mais se ouviu falar da participação no Concurso da Eurovisão mas em Dezembro de 1960 foi anunciado para o fim do mês um programa com o nome "I Concurso de Canções Ligeiras da RTP". Ao mesmo tempo era posto à venda o disco 7LEM 3063 d' A Voz do Dono com a participação de Maria de Lourdes Resende e António Calvário, em que o último cantava Amanhã se Deus quiser "Canção premiada no concurso da RTP" (sic). A 17, a revista Rádio e Televisão noticiava o sucesso do disco em causa acrescentando uma frase misteriosa: "No disco agora posto à venda (...) e contrariando firmes previsões segundo as quais a gravação nunca seria feita, (surge-nos) a canção de Nóbrega e Sousa e Jerónimo Bragança Amanhã se Deus quiser, premiada pelo Serviço de Programas Musicais da Radiotelevisão Portuguesa. Canta António Calvário."
É claro que a RTP nunca participou no Festival da Eurovisão de 1961 (presumivelmente não cumpriria algum requisito necessário) mas parece que também não cumpriu a cláusula contratual em que se comprometia a promover a edição das canções em disco. Provavelmente terá havido um acordo com contrapartidas para os autores (a RTP tinha uma posição leonina, uma vez que era o mais poderoso meio de difusão da música ligeira, e ninguém queria incorrer na má-vontade dos seus serviços). Uma hipotética contrapartida poderia ser a opção de participar no concurso que escolheria a canção que representaria Portugal no primeiro ano em que isso fosse possível. Nessa época uma canção podia representar um país desde que fosse inédita, independentemente de ter já sido cantada em público e portanto as canções eram elegíveis desde que não fossem gravadas. "Amanhã se Deus quiser" deve, portanto, ter sido editada sem qualquer ajuda da RTP (na época a edição em disco de uma música não era coisa fácil, como seria mais tarde) donde a críptica nota no artigo da revista.

Para complicar a interpretação deste episódio inédito da história dos Festivais RTP da Canção, cerca de dois anos mais tarde, quando a canção era já um êxito na voz de António Calvário, Nóbrega e Sousa afirmou "Amanhã se Deus quiser obteve o primeiro prémio (sic) num concurso de canções promovido pela televisão e a que eu me lembrei de concorrer. De acordo com a RTP, escolhi o intérprete que melhor poderia exteriorizar a canção. E essa escolha recaíu no Calvário, que tão bem a tem sabido interpretar. Considero Amanhã se Deus quiser um dos meus grandes êxitos
No dia 28 de Dezembro de 1960 os jornais anunciavam, na programação da RTP para essa noite, o "Festival do I Concurso de Canções Ligeiras da RTP" (sic) mas o tal "Festival" não impressionou o suficiente para os jornais do dia seguinte se lhe referirem. Referiram, sim, o obscuro jogo de handebol que foi transmitido a seguir.

A revista Rádio e Televisão noticiou assim o programa de 40 minutos, dez dias após a sua realização: "Novas melodias portuguesas surgiram na televisão- Com a realização do 1º Concurso da Canção Ligeira surgiram, além de outras, seis melodias portuguesas que poderemos considerar como a revelação de seis novos êxitos. Não pretendeu a RTP realizar um festival ao nível de tantos que, anualmente, se efectuam no estrangeiro. Seria pretensiosismo. Haja em vista, até, a discrição do programa, em que participaram Gina Maria, Mara Abrantes, Luis Piçarra, António Calvário e José Manuel Mendes- este último um estreante na TV (...)". A segunda metade da notícia refere-se com grande entusiasmo ao convidado-surpresa: Francisco José, recém chegado do Brasil para uma estadia em Portugal. Mas das canções nem se fala- não são nomeadas, não se lhes atribuem intérpretes, nem é referida a classificação. Estranho concurso e estranho festival cujos próprios organizadores pretendem discreto!
Uma explicação possível da causa da incapacidade para participar atempadamente no Festival da Canção da Eurovisão surge numa pequena notícia publicada em Fevereiro de 1962 em que se informa que "o nosso País está finalmente no caminho decisivo que o levará a ingressar na Eurovisão". A notícia relatava a necessidade do estabelecimento de uma rede de comunicações fixa até Lisboa (por contrapartida com as ligações provisórias até então utilizadas), que não era ainda possível por não ser assegurada por Espanha até à nossa fronteira. A notícia refere o encontro entre responsáveis dos dois países para resolver a situação. A rede só ficou realmente completa em finais de 1965 mas presumivelmente em 1964 já se teriam conseguido condições que permitiam cumprir os requisitos mínimos para a participação no Festival.



Na verdade Portugal era já membro da Eurovisão há vários anos mas não devia cumprir a totalidade dos requisitos para poder participar em pé de igualdade com os membros mais antigos (ainda hoje há diversos tipos de associados e também requisitos especiais impostos aos participantes nos Festivais da Eurovisão).
A 2 de Fevereiro de 1964 realizou-se, finalmente, em Lisboa o 1º Festival RTP da Canção para escolher a representante portuguesa ao IX Festival da Eurovisão que se realizaria em Copenhaga a 21 de Março desse ano. Percorrendo a lista das canções finalistas encontram-se diversos dos autores que tinham também participado no Festival/Concurso de 1960.
Sairia vencedora Oração ,cantada por Antonio Calvario e que seria assim o nosso primeiro passaporte musical para a Eurovisão.

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